O que muda em um dia


Authors
glittergala
Published
1 year, 3 months ago
Updated
1 year, 3 months ago
Stats
1 2032

Chapter 1
Published 1 year, 3 months ago
2032

Sunitha desce de realeza a pirataria em um único furacão de treze horas. [pt-br]

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Atordoada


Ela havia sorrido.


Uma mão estendida, sangue nas roupas e um mundo inteiro em suas costas pegando fogo através da guarnição vazia.


Ainda assim, um sorriso no rosto.


Sunitha teria rido, também, de volta. As feições de Caligula eram sempre magnéticas, como uma lua puxando de si emoções em ondas violentas mas certeiras. Nunca haviam falhado; não até agora.


Devia ter algo a ver com o fato de que agora suas mãos estavam sujas de sangue, também, Sunitha pensa. Não do jeito metafórico que Caligula havia dançado em palavras, mais cedo, em óbvias insinuações nada sutis que agora demonstravam-se a coreografia improvisada da auto confiança. Não. Aquilo havia sido a certeza, fundada em verdades, de que nada mudaria ao esconder a contagem de corpos com seu nome assinado logo abaixo – as mãos de Caligula não estavam vermelhas, de verdade, pois ela era meticulosa e habilidosa demais para realmente as sujar. Sangue sujava sua alma, sua essência, e a sua pessoa, num nível extremamente pessoal e fundamental que Sunitha nunca entenderia completamente – apesar de conseguir ler, em recortes e paráfrases, nos olhos da mais velha – mas que nunca macularia a sua carne.


Sunitha, todavia? Nem tanto.


Ela estava encharcada, dos pés à cabeça, em vermelho do carmesim mais profundo. Suas roupas eram originalmente brancas e de uma lã traiçoeira que bebia qualquer líquido e se tingia sem dó. Seus cabelos e pele, quase do mesmo tom alvo incriminante, não se demonstravam muito diferentes, embora fossem marcados mais notadamente por tons mais escuros do sangue que havia secado em si e agora não iriam apenas pingar e deslizar para longe.


Suas mãos, então, eram uma vista ainda mais triste. Passara a vida inteira cuidando delas, as escondendo debaixo de luvas e afastando calos ao evitar o uso de qualquer ferramenta, arma ou semelhante. Assim, elas como estavam agora, com linhas marrons embaixo de suas unhas e banhadas uma mistura de vermelho vivo e vermelho escuro, secando e formando camadas de terror– Sunitha choraria em desamparo, fosse ela a mesma pessoa de treze horas atrás. 


Treze horas. Treze horas, e alguns tantos soltos de minutos desamparados. Treze horas desde que havia visto a pirata pela primeira vez, tão elegante e de passos tão tranquilos que ela nem precisara mentir sobre seus motivos para andar no jardim central da vila; Sunitha havia simplesmente assumido que se tratava de alguma pessoa de importância política, iniciando uma conversa cortês que sem muitos pretextos afundou-se nos questionamentos mais debilitantes para a jovem nobre. Treze horas, e seu mundo inteiro havia sido incendiado, deitando ruído em meio a fuligem e carvão.


Sua mão havia se conectado com a de Caligula com uma facilidade quase tão assustadora quanto o quão certo era o sentimento em seu peito– e ali mesmo, tudo renascia das cinzas.




.


.


.




"Ai!" Ela sibilou, dentes colando-se e deixando escapar um chiado não muito diferente de um gato coagido com o estalar de sua mandíbula. Em sua testa, um corte ardia abaixo dos cuidados de um pano banhado em álcool; Sunitha era educada em conhecimentos básicos de medicina, e sabia o quão importante era a etapa de desinfetar uma ferida, mas isso não tornava mais suportável o fogo que lhe lambia a tempora.


O jovem ruivo a sua frente afastou o trapo ofensivo e pigarreou com uma risada seca e curta. 


"Pare de se mexer, chyort! Estou tentando fazer meu trabalho aqui!" Disse, uma mão pesadamente posta em sua cintura e brincos em argola balançando. Suas sobrancelhas estavam ambas escondidas atrás da franja de cabelo flamejante, que encaracolado ganhava um volume pesado, mas o pinçar de seus olhos deixava claro a careta que puxava.


"Pois não está o fazendo direito!" Sunitha retrucou, dedos cautelosos subindo até as bordas do corte que lhe corria a testa. Apenas a proximidade e calor de suas falanges fazia a ferida pulsar em desavença, e com algumas rápidas cutucadas contra seu bom senso (e favor de sua dor), ela resolveu o deixar de lado.


Ao fundo, a risada pesada de Caligula se carregou entre o ar e se instalou entre eles. Não era uma coisa estridente ou que se prolongava eternamente, mas era possível ver a força das contrações de sua barriga empurrando-a para fora. Ela se sentava a alguns pés de distância de Sunitha e o jovem pirata cujo nome a menor não fazia questão de se lembrar, corpo dobrado em si onde Caligula se sentava em cima de um barril. Ao seu lado, descansava contra a parede uma espada embainhada de lâmina fina e punhal corpulento, como um sabre de esgrima personalizado. 


Do seu lugar na cama que rangia com o balanço do navio, Sunitha sentiu um pouco da pressão em seu peito aliviar-se com o som. Afinal, se uma pessoa como ela já estava rindo, então Sunitha poderia também, não? A lua cheia através da janela redonda acima de Caligula pareceu iluminá-la com um tom de luz pálida um toque mais gentil.


"É, McCarthy, que tal nos dar um trabalho decente, hein?"


"Ah, pois cale a boca você também, tá certo?!" Rosnou, amassando o pano em suas mãos com gestos bruscos e o jogando na mesa ao seu lado. O excesso de álcool pingava de seus dedos, e ele os sacudiu com força duas ou três vezes antes de lamber a região entre polegar e indicador da mão direita, grudando sua boca ali como alguém que tentava estancar uma ferida pequena. "Eu não deveria estar fazendo isso! Não sou a proklyatyy de um médico! Alaric é quem devia tá aqui!" Continuou entre dentes, surpreendentemente audível em cima do empecilho em sua boca e do sotaque carregado por desgosto.


Sunitha teve de admirá-lo, um pouco. Caligula nem em seu estado mais sereno deixava de parecer ameaçadora em seus olhos, então ver alguém praguejando na direção da pirata com tanto afinco? Ainda mais um subordinado seu? Sunitha segurou um arrepio, mas Caligula só aumentou seu sorriso predatório.


"Onde está o infeliz, afinal?" Continuou o jovem – McCarthy, Sunitha se corrigiu, lembrando a si mesma de que mesmo próximos em idade talvez o ruivo merecesse algum respeito como superior. 


Caligula só cantarolou em resposta, fechando seus olhos como falso pretenso de pensar com cuidado no assunto.


"Bom… Em algum bar por aí, talvez, se divertindo e planejando voltar só pela manhã~?" Disse a capitã, não perdendo o tom jovial.


"Mas– o que–?!" McCarthy disse, afogando-se em suas palavras e tossindo com força. Pressionou suas mãos com força contra a regata surrada que usava para tirar das mãos as últimas gotas de líquido, e pulando seu olhar rapidamente entre as duas mulheres foi abrindo a boca como um peixe, demoradamente. Parecia querer dar tempo o suficiente para que alguma das duas lhe dissesse que não, não, ele estava a caminho, com certeza, e logo logo arrumaria essa bagunça. "Aquele svoloch'...!"


Caligula riu novamente, parecendo divertida com a reunião pessoal de McCarthy e seus muitos "blyat"s, mas não se manteve parada por muito mais tempo do que o necessário para o sobe e desce de seu abdômen. Ela pulou do barril, pés já não mais graciosos como haviam sido mais cedo, e pareceu perder a firmeza em seus ombros com o suspiro que soltou.


"Ora, vamos. Já está tarde," frisou, num tom que estava metade em concessão com o sono e metade preocupado com acalmar seu tripulante. "Não vamos morrer. Estamos bem o suficiente para resolver isso no sono, não é, Sunitha?"


A capitã lhe lançou o mesmo sorriso predatório de antes, e a novata começou a ter a leve impressão de que era esse apenas o destino de qualquer expressão no rosto da mais velha. Suas feições pareciam moldadas ao redor de olhares calculados e semblantes diligentes, enxergando através de todos e tudo o que diziam. Dissertando-os por entre finas amostras de seus olhos, pedaço por pedaço, com uma meticulosidade médica e arcana.


Sunitha piscou forte.


"Huh? Ah, é." Balbuciou, desprevenida, trocando seu olhar entre Caligula e McCarthy com rapidez. Lembrava vagamente daquilo com que havia concordado, mas ambos piratas a sua frente a fitaram com um franzido em suas testas que pareciam perguntar "é mesmo, é?" e a jovem decidiu que esta não seria uma luta pela qual iria se dispor. Ela contorceu-se em cima do colchão de molas.


Caligula alargou seu sorriso, uma bufada curta de risada escapando por seu nariz. Ela caminhou os poucos passos até McCarthy de forma vagarosa, colando com força uma mão onde sua escapula se situava e fazendo o ruivo torcer a coluna alguns graus para frente. Ele, por sua vez, não expressou nada mais que um grunhido entre dentes, seus olhos opacos admitindo que esta não era uma ocorrência muito rara.


"Está decidido, então!" Ela bradou, riso atado em sua voz e dentes brancos rasgando sua face. Caligula espalmou as costas de McCarthy uma vez mais, antes de se afastar em passos largos em direção à porta. "Vamos lá, McCarthy! Mostre para sua nova irmã onde ela irá dormir hoje!"


O ruivo engasgou com o ar.


"Que–?! Nós não chegamos a discutir isso, ei! Volte aqui, suka, não vou sofrer com essa–!"


Mas já era tarde, e Caligula havia fechado a porta com um click quase inaudível. McCarthy encarou a porta por onde a capitã havia sumido, boca ainda aberta ao redor de palavras engolidas, e levantou as mãos ao ar em um movimento desconcertado. 


Sunitha sentiu uma pontada de empatia em seu peito.


"Sinto muito, uh, McCarthy…?" Começou, tentando acertar a pronúncia do sobrenome que lhe era estrangeiro.


"É Marlin." Disse, derrotado, braços caindo ao lado de seu corpo e um suspiro se entrelaçando em suas palavras. "Meu nome é Marlin."


Sunitha piscou, apontando para a porta e para o fantasma de sua capitã. 


"Oh, uh, é que ela havia…"


"Sim. Porque é Marlin McCarthy. Mas não preciso de todos me chamando pelo meu sobrenome." O ruivo resmungou, correndo uma mão por seus cachos curtos. "Mas não é como se alguém me ouvisse, então, vá em frente e me chame do que quiser também. É menos estranho assim, a esse ponto."


Marlin, como ele mesmo havia dito, pareceu perder a luta contra a sua situação naquele momento. Seus ombros se soltaram, tensão deslizando ao chão pelas linhas de seu corpo e rosto juvenil ganhando alguns anos a mais. Ele não parecia ganhar o suficiente para ter de aturar a atitude eclética de Caligula, e Sunitha repensou pela primeira vez sua decisão de subir a Lótus Branca.


"Bom, vamos lá…" Ele disse, fazendo um sinal com a mão para que a jovem albina se levantasse e dando dois ou três passos em direção a porta. Em frente aos movimentos atordoados de Sunitha, descarrilou sua voz e esperou até que terminasse o ritual de dobrar suas juntas com cuidado e desse lugar ao estalo de suas costas. 


Uma vez que Sunitha já dava seu primeiro passo, e trancava seu olhar no dele, sorriu.


"...Não queremos dormir ainda mais tarde, não é,  Sunny?"


A pele alva da nova pirata enrubesceu, e o sangue subindo ao seu rosto trouxe uma nova linha fina de sangue descendo de sua testa. Suas tentativas de retrucar foram colando ao céu de sua boca e rolando de sua língua apenas em partes e sílabas soltas, tão eficazes quanto suas tentativas de agarrar o ruivo que saia com pressa da pequena sala se suprimentos.