Fuligem e Carvão


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NeoError
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9 months, 5 days ago
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Astrid, esse é meu nome. Não possuo sobrenome, sequer possuo um título mais nobre do que o garoto que limpa calhas e conserta pias velhas - e essa é minha história.

Nasci de uma família pobre. Ophelia, minha mãe, tinha os cabelos pretos e longos mais lindos que já vi em todo o resto de minha vida. Meu pai, aquele homem sem nome sentado no sofá, possuía a mesma iris verde esmeralda que tomava meus olhos. Sempre que me olho no espelho vejo apenas aquela barriga grande e os pés descalços recostados na poltrona - nunca vejo o sorriso gracioso de Ophelia, nunca vejo o olhar doce e gentil de quem me daria o próprio sol para me ver sorrir. Apenas o homem. Aquele homem.

Logo quando grávida Ophelia rezava para que eu fosse um garoto. Tinha que ser um garoto. Um garoto ou eu seria entregue para as carroças nas mãos de meu pai... Mas no momento que saiu uma garotinha indefesa com o coração fraco e os olhos brilhantes Ophelia sabia que precisava me proteger. E assim me tornei Atreus. Eu precisava ser Atreus, não era uma questão de querer, mas sim de sobrevivência. Ser um garoto era tudo que eu poderia fazer para minha mãe.

Aprendi a usar as ferramentas na garagem, aprendi a ajudar com as tarefas domésticas. Sempre escondido por debaixo das saias longas de cor rubi de Ophelia. Um garotinho tímido que fugia dos olhares do pai bêbado e se emaranhava entre engrenagens das usinas daquele bairro pobre. Toda noite eram machucados e a roupa cheia de graxa: mas mamãe não achava ruim, ela gostava de que eu tivesse amor por algo... Mesmo não entendendo meu amor por cada parte mecânica funcional.

Aos sete anos a praga finalmente chegou ao meu bairro. Me perguntei por dias o motivo do porque aquele homem bêbado e fedorento não havia adoecido enquanto minha mãe estava de cama. Eu sequer podia vê-la realmente... As janelas cobertas por lençóis brancos anunciaram o triste fim. Um fim no qual assisti seu enterro sem derrubar uma lágrima - se derrubasse, papai iria me observar melhor... E aquilo seria a última coisa que Ophelia gostaria: perder seu primogênito. Ela foi enterrada com sua boneca de pano, Astrid... A boneca da qual roubei o nome para meu segredo mais obscuro.

Anos passaram comigo trabalhando no bairro. Eu era uma pequena vareta ruiva coberta de fuligem e graxa, mas gostava de quando as senhorias me davam uma moeda a mais como gorjeta. Atreus, o faz tudo do bairro. Atreus, o garoto que construiria o mundo! Até que Gabriel e sua mãe apareceram em minha vida - uma família rica que estranhamente alguma parte da casa quebrava todo dia. Nós nos aproximamos, eu com 13 anos e Gabriel com 16. Eu gostava dele e de sua mãe, Gabriel me ensinou a ler e escrever enquanto sua mãe me dava refeições deliciosas e gorjetas gordas para comprar doces no fim da rua.

"Como você conseguiu viver por tanto tempo sozinho quando é tão violentamente auto destrutivo?" A mulher me perguntou uma vez. Eu também não sabia. Nunca tive um senso de perigo com as máquinas, apenas com humanos, era como se cada engrenagem girasse a meu favor e eu tivesse controle de algo pela primeira vez na minha vida. Era bom ter controle de algo. Em um certo momento ouvi a senhoria da casa conversando com outra mulher sobre "dias femininos" nos quais sangravam entre as pernas. Eu nunca tinha acontecido de sangrar daquela forma, eu era imune por fingir ser um garoto?

Não, não era imune. No mesmo dia que sangrei pela primeira vez foi o dia que meu pai descobriu sobre Gabriel e sua mãe. Passei o dia no quarto ouvindo como nunca mais iria visitar a casa dos dois, mas também parte da dor extrema no estômago me náuseava. Eu queria morrer. Havia perdido meu melhor amigo e uma segunda mãe. Por que eu sangrava tanto? Ophelia não havia me dito aquilo.

Durante uma semana aguentei as dores fortes e o sangue. Trocava de roupas constantemente, aprendi a esconder o corpo que se formava por debaixo dos panos. Cada mês era uma semana a mais de tortura. Cada mês meu coração ficava mais e mais fraco... Até que senti-o parando.

Naquele segundo peguei todas as economias do velho que logo gastaria na taberna. Um bolso cheio de moedas, um garoto de 16 anos completamente sem ar nas partes baixas da cidade procurando uma ajuda, qualquer ajuda. Eu precisava sobreviver... E aí veio A Bruxa. A Bruxa foi a terceira mulher na minha vida. Uma mulher alta de cabelos cinzentos, porém jovem. Ela segurou meu pulso e era como se sentisse meus batimentos, sentisse o pedido de ajuda que sequer consegui falar. Me levou para dentro e em poucos segundos eu havia apagado.

Acordei um tempo depois com um *tic tac* fraco dentro de mim. Uma pilha de engrenagens bem encaixadas fazia meu coração funcionar, o sangue bombear. Era como pura arte enquanto A Bruxa me costurava e colocava um selo em meu peito. Ela não falou uma palavra durante a cirurgia, de alguma forma sabia sobre mim. De alguma forma, mesmo nunca termos nos visto antes, A Bruxa sabia sobre a garota morta em alma, sabia que eu tinha problemas no coração e que principalmente eu estava fugindo. Não tirou uma moeda sequer de mim, mas me expulsou com marcas de engrenagem pelo corpo - peito e coxas, como um açougueiro marcando seu gado.

Com algumas moedas e o barulho baixo em meu peito comecei a viajar ainda como Atreus. Eu precisava ser Atreus. Eu era Atreus. Eu sempre seria Atreus... Uma garrafa roubada do whisky mais forte, murmurinhos nos becos e uma chave de fenda na cintura me deram mais satisfação do que morar tantos anos com o tal homem que era meu pai.

Me sinto preso em meu próprio corpo. Tenho tanto medo de que isso é tudo que serei para todo sempre. Tenho que desistir de Astrid. Por que eu queria tanto ser essa garotinha perdida?