Sin & Fire


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NeoError
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8 months, 1 day ago
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• • • Zero.

Meu nascimento foi nos fundos do camarim do circo. O picadeiro estava barulhento e o palhaço fazia todos rirem mais alto de propósito para que não escutassem os gritos da minha mãe.... Mãe. Uma mulher sozinha. A trapezista do Sinners Cauldron - o maior circo naquela região esquecida por qualquer Deus. Eu não recebi um nome, não, sempre me chamavam apenas e unicamente de "coelhinha". Na época não sabia o motivo de apenas um apelido, na verdade eu não descobri o motivo até estar bem mais velha, mas meu foco nesse momento é meu nascimento.

Fui a única que sobreviveu entre a ninhada de pequenos coelhos anões holandeses que iria ser criada ali. Minha mãe nunca ficou triste por eu ser a única - muito pelo contrário, acho que era um alívio ter tido apenas uma de mim.

• • • Cinco

Eu também era uma trapezista já bem nova. Fazia grandes apresentações e era apaixonada pelos aplausos, mesmo quando meu corpo implorava por descanso lá estava a pequena coelha vestida de rosa com as orelhinhas balançando.

Meu colega favorito era o Senhor Dice, um urso pardo adulto que trabalhava como nosso palhaço. Ele sempre cuidou de mim como se fosse meu pai, passávamos a maior parte do tempo juntos - e em compensação, Dice me levava para a escola.

Odiava aquele local. Odiava as crianças ao meu redor. Todas elas me olhando e rindo como se morar em um circo fosse algum tipo de piada.... Eu apenas queria amigos no começo, mas logo o desejo por amigos se tornou uma raiva inconstante de que eu realmente nunca fugiria do circo. Elas estavam certas em rir. Aquele era meu lugar. Eu era apenas a "coelhinha", sequer havia um nome para me chamarem... As crianças são as criaturas mais maléficas que já existiram. Crianças não mentem. Nunca mentem.

• • • Oito.

Estava numa sala com Senhor Dice quando desabafei sobre ser eu. Hoje, olhando para trás, vejo como aquele desabafo foi idiota - Dice deveria ter rido e me dito que eram só crianças e nada daquilo iria permanecer... mas ela não o fez. Dice me sentou na sua cadeira, pegou um pincel com tinta azul e começou a desenhar em meu rosto.

"Sabe, coelhinha, sua mãe me disse que gosta de livros. Livros tem capítulos, não? E a vida é como um livro."

Eu olhei para o mesmo enquanto a tinta secava e ele olhava entre as araras de roupa.

"Você não pode pular um capítulo, não é assim que a vida funciona. Você precisa ler cada linha, conhecer cada personagem. Você não precisa gostar de tudo, na verdade alguns capítulos farão você chorar por semanas... Você terá capítulos que não quer ler e páginas que rezará para que nunca acabem. Mas você tem que continuar. O mundo é feito de histórias..."

Me contava ao me entregar uma pequena roupa de palhaço cor de rosa, assim como a minha cor favorita. Quando era pequena eu não sabia que Dice havia sido um escritor famoso e deveria levar as palavras dele como uma bíblia para minha vida, apenas vesti a roupa e me olhei no espelho... Eu era uma palhaça.

"Está vendo só? Meu trabalho é fazer os demais sorrirem... Com essa maquiagem você não precisa forçar um sorriso, ele vem naturalmente.... Vamos, coelhinha, você precisa sorrir como um palhaço."

Murmurou apertando meus ombros e me olhando pelo reflexo do espelho. Realmente... eu não precisava sorrir.

• • • Dez.

Fumaça. Acordei com o cheiro forte de fumaça queimando meus pulmões, enchendo meu corpo de fuligem enquanto eu tossia em busca de ar. Estava doente naquela noite e não pude performar no circo, então fui a única que permaneci nas tendas atrás do mesmo.

Foram poucos passos para sair daquela tenda brilhante com estrelinhas coladas na cortina para avistar... Fogo. Fogo. Fogo. Todos gritando, criaturas correndo de lá para cá. O cheiro de pano e pelo consumindo meu cérebro. Mãe e Dice estavam lá dentro, as chamas subiam como se estivessem se apresentando no palco conosco.

Tentei correr, tentei me agarrar a um pedaço de pano e entrar antes de um lobo negro me arrastar para fora e me ajudar a respirar. Eu pude jurar que ouvia minha mãe gritando meu nome nos fundos, posso jurar até hoje que Senhor Dice estava preso entre as vigas caídas recitando alguma poesia para serem salvos.

O fogo consumia tudo e tudo que eu podia fazer era olhar enquanto minha vida toda queimava na minha frente.

• • • Quatorze.

Já fazia um tempo que eu estava sozinha. Logo após a destruição do circo e a morte de tantos membros, a cidade entrou em um luto silencioso mútuo, mas eram óbvios os murmurinhos tendo dó da pequena coelha sem nome. Parei de lares em lares, me mantive a maior parte no orfanato.

Não deu nem dois anos para que um novo circo parasse na cidade. Este estava cheio, não queriam saber de contratar uma coelha órfã e sem nome para dar piruetas no ar... mas eram bons o suficiente para me deixarem usar o trapézio quando não tinha shows.

Nos primeiros meses os olhares de meus colegas de escola foram tristes. Eu odiava que me olhavam com aquela falta de brilho, odiava que sentissem dó - afinal, eles nem sabiam meu nome. Não conheciam minha família ou meu circo, tudo o que faziam era zombar da coelha trapezista pelas costas. E mesmo assim ali estavam.

"Meus pêsames." E eu assenti com a cabeça. "Eu sinto muito." E eu assenti com a cabeça. "Foi uma perda enorme para nossa cidade." E eu assenti com a cabeça. "Meus pêsames, coelhinha." E eu assenti com a cabeça. "Você é estranha." E eu assen.... Eu o que?

Sai do meu transe de luto constante quando aquele pastor alemão sentou ao meu lado no balanço. Ele era alto, muito diferente de mim. Seus olhos eram azuis e o nariz marrom, era fofo e tinha uma manchinha acinzentada no olho esquerdo, além da falta de um dos dedos da mão.

"Você é esquisita." Não respondi. Então ele repetiu. Eu me empurrei no balanço com certa dificuldade, olhando para frente.

"Não sou eu que tenho um dedo faltando." "Você me pegou. Eu perdi brincando com a máquina de corte do meu pai." "Legal." "Você ainda é esquisita."

Eu queria socar ele, mas naquele exato momento eu sorri. Pela primeira vez naquela escola eu... eu sorri. E assim viramos melhores amigos.

• • • Dezessete.

"A coelhinha e o Oscar estão namorando!" "O Oscar e a coelha estão saindo?" "Você viu? Eles ficam juntos o tempo todo. Eu vi eles se beijando depois da escola!" "Claro! Já viu o corpo dela? Ele tem sorte. E ela é tão pequena..." "Mas ela é louca!" "O que importa ela ser louca se tem aquele tamanho? Pensa como é fácil-" "Não continua." "Você já pensou, não pensou?" "Já." "Sortudo."

Murmurinhos por todo lado. Sussurros que apenas contavam mentiras, eu e Oscar sabíamos que eram mentiras.

Desde o dia que nos conhecemos no balanço as mentiras haviam começado. Ele não se importava quando falavam sobre nós, mas lançava olhares feios quando alguém citava meu corpo ou altura. Eu achava bonitinho. Melhor, eu o achava bonitinho.... mas era verdade, eu era louca.

"Oscar... Quer matar aula comigo?"

Perguntei. Ele não me questionou nem por um segundo, agarrou minha mão e saímos correndo, nos escondendo dos outros e pulando o muro da escola. Oscar segurou em minha cintura na hora de pular, o que me deu calafrios.

Dali corremos direto para o circo no qual eu treinava. Oscar havia pedido por meses para eu mostrar para ele como eu era habilidosa no trapézio e aquele era finalmente o momento: eu precisava descontar minha raiva em algo que amava.

Naquela manhã levei ele comigo escada acima para que assistisse do melhor ponto de vista. Me agarrei ao trapézio e sequer tive oportunidade de trocar de roupa, pulei com a blusa da escola e a saia feia que éramos obrigados a usar. Eu sempre havia sido habilidosa, me jogava de lá para cá... mas naquele dia o circo estava cheio de luzinhas pisca pisca com os novos preparativos para uma volta das férias dos integrantes, além de que não tinha a rede de segurança dos trapezistas.

Minha mente estava a mil, meu corpo esperava o toque de minha mãe agarrando minhas mãos e me pendurando lá de cima - mas tudo o que consegui foram luzinhas presas em meu corpo e pescoço, luzinhas na qual iriam me enforcar se Oscar não tivesse sido rápido o suficiente para me agarrar quando cheguei na beirada. Ele as afrouxou, rindo de mim.

"Esquisita. Tá querendo morrer, BunBun?" "É a adrenalina... Eu... Eu poderia pular de um prédio agora que tudo estaria bem."

Ele sorriu. Seu sorriso era lindo, então o puxei para mais perto e o beijei.

Era claro como ambos não tínhamos jeito para aquilo, mas Oscar não foi para trás e nem me soltou, na verdade ele agarrou minha cintura e continuou o beijo. Minhas orelhinhas balançavam e as dele permaneciam caídas.

"Aí!"

Senti o gosto de sangue e ele me soltou com um resmungão, colocando os dedos encima da boca. Eu havia mordido ele sem perceber. Oscar riu. O sangue em meus dentes havia começado a ter gosto de poesia, gosto de religião. Tinha o mesmo gosto das borboletas no meu estômago que surgiam quando ele me olhava daquele jeito.

As luzinhas ainda estavam presas em mim, porém ele as segurava enquanto eu permanecia com o trapézio na mão. Algo me levou a andar para trás, rindo junto com Oscar, não percebendo que ali era exatamente o fim da área segura que nos mantinha no alto.

Foram segundos. Segundos para que ele viesse comigo e eu percebesse tarde demais que a única coisa que seguravam Oscar no ar eram luzinhas de natal.

Algo arrebentou e aqueles fios me enforcaram. Ouvi um baque forte no chão enquanto me forçava a tirar os fios com uma mão e pegar impulso para voltar a plataforma e descer correndo.

Ao tocar em seu corpo caído eu já sabia o que me esperava: nada. Oscar não estava mais vivo. Tinha uma poça de sangue envolta de sua cabeça e um punhado de fios arrebentados em sua mão.

"Por que você me matou?"

Ouvi um sussurro antes de sair correndo, lágrimas nos olhos e me agarrando aos panos para não cair. Não. Outra vez não. Dessa vez havia sido minha culpa... Eu não podia ser presa. Eu não podia deixar Oscar ali... Eu... Eu tinha que deixar meu melhor amigo. Eu o matei.

Tateei minha mochila achando uma caixinha de fósforo. Sem pensar duas vezes risquei o palito, a chama trêmula suspirou para mim enquanto eu tinha certeza de que a tenda estava pegando fogo. Tinha certeza que tudo estava pegando fogo.

Eu amei aquele garoto e ele me tocou com seus dedos. Ele queimou buracos em meu pelo com sua boca. E doía olhar para o lugar que ele costumava me segurar. Também doía não olhar. Parecia que alguém havia me cortado aberta com um pedaço de vidro cego. E eu percebi que sempre me senti daquele jeito. Eu não tinha nome. Eu não tinha nada. Eu era um produto feito para machucar as pessoas. Minha mãe nunca me deu um nome para que ela não se apegasse a mim. Afinal, eu era algo que ela não queria. Eu era feita para a dor. Eu era um produto feito para colocar fogo nas coisas. No incêndio do Sinners eu havia deixado um lampião junto da área de descanso de Dice. Eu comecei aquele fogo. Eu sempre fingi ser o herói de uma história que nunca salvei.

• • • Vinte e cinco.

Anos se passaram enquanto eu me apresentava em pequenos circos ambulantes que passavam pela cidade. Sempre tinha um sorriso no rosto, o sorriso de um palhaço. As pessoas me adoravam e eu adorava ser aplaudida.

Até o rumor de que aquele gato viajante passaria pela cidade. Ele tiraria meus ganhos da semana - com azar, tiraria meus ganhos do mês e eu morreria de fome.

Fui até seu espetáculo.... O mesmo olhar esperto de Dice. O mesmo sorriso intrigante de Oscar. Eu tinha costume de me apaixonar por predadores e por seres que poderiam facilmente me destruir. Mas eu não estava apaixonada, apenas intrigada. O coelho em sua cartola em poucos minutos estava em minhas mãos. Eu estava pronta para destruir mais um show.

Ou... quem sabe se eu aparecesse no momento certo dizendo que encontrei aquele coelho, eu não seria útil? Poderia fazer parecer com que eu era a companheira de viagem perfeita, a trapezista perfeita.

Ali estava meu ticket para fora daquela cidade e eu nunca tive medo de dentes afiados.