[pt-br] Rei


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glittergala
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3 years, 10 days ago
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Explicit Violence

A história (quase) completa.

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Reise Reverie veio ao mundo como "Luka" assim como sua irmã Vivienne veio como "Veta", nascendo e passando seus tenros anos de idade na pobreza de guetos, se escondendo nas ruas e lutando para sobreviver em uma cidade perigosa. Sua mãe, Jade, trabalhava com serviços sexuais durante a maior parte do dia, mas nunca falhava em dar atenção a "Luka" e sua irmã; seu pai, no entanto, nunca ao menos soube da existência das crianças. Os gêmeos haviam sido "acidentes" gerados por um cliente de sua mãe que não se satisfez com os serviços da prostituta e decidiu tomar seu próprio prazer contra a vontade da mulher– mas, mesmo assim, Jade se comprometeu a cuidar o melhor que poderia das crianças, e as amou incondicionalmente.

Durante quase oito anos, Rei viveu uma vida difícil mas feliz com sua mãe e irmã; ele e Veta eram incomodados incessantemente dia após dia, com comentários sobre o trabalho de sua mãe e sussuros sobre sua possível linhagem híbrida– “que tipo de coelho tem *presas*?!” “Jade passou a ir ao açougue desde que essas pestes apareceram” “aquela vadia aceita trabalho de qualquer um, isso seria mais do que possível” – mas ele nunca se importou com essas coisas. Ele era feliz com sua vida do jeito que ela estava, e não precisava de mais nada

Sua mãe havia largado o trabalho solitário e começado a trabalhar sob um bordel quando os gêmeos tinham em torno de seis anos, e a família ganhou uma moradia estável. Era mais do que óbvio, entretanto–até para a mente jovem do híbrido–, que os gêmeos não eram vistos como um símbolo de boa sorte. A hostilidade ainda não os impedia de viver sua vida normalmente, no entanto, então "Luka" só continuava a assegurar sua mãe de que estava tudo bem.

Depois dessa mudança, sua mãe usou o pouco de dinheiro que havia juntado para mandar os gêmeos a uma escola pequena na cidade vizinha; mas como consequência, passou a ter ainda menos tempo com seus filhos– e o garoto passava suas tardes nos portos e docas de navios aéreos perto da escola, voltando para casa somente ao anoitecer. Sua irmã não parecia entender o que achava tão fascinante nas embarcações voadoras, mas o acompanhava.

Alguns meses antes de seu aniversário de oito anos, no entanto, quando os gêmeos já fantasiavam com a ideia de conseguir passar um dia inteiro com sua mãe – como faziam todo aniversário até então – o mundo das duas crianças acabou mudando completamente.

Após passar uma tarde como qualquer outra vendo os navios, fazendo tarefas da escola e brincando juntos, Luka e Veta voltaram ao bordel onde sua mãe trabalhava e onde moravam, com a intenção de entrar pelas portas dos fundos e ir direto aos quartos dados aos empregados do lugar. No entanto, ao entrarem no quarto dos fundos que separava a área de vivência e o bordel, notaram o silêncio enervante– em um dia normal, o prostíbulo emanava música de mal gosto, o murmúrio de conversa e sons que não eram para suas orelhas jovens. *Aquilo não estava certo.* Os dois híbridos entraram em um acordo mudo e decidiram espiar o que tinha o casa de tolerância naquele silêncio– apenas para se depararem na perturbante cena de sangue e corpos quase nus cobrindo o chão.

O salão inteiro não dava sinais de vida, cadeiras e mesas estavam reviradas, o pequeno bar ao fundo do estabelecimento não tinha uma garrafa intacta ou banco em pé; o cérebro dos gêmeos quase entrou em curto circuito. Luka e Veta ambos ficaram parados na porta, olhando para aquela visão infernal por um tempo indeterminado– quando Veta sussurrou,

— Mamãe...?

E em um instante, os dois não conseguiam mais ficar parados. Eles entraram no local em uma enxurrada de emoções, chorando por sua mãe e procurando os cabelos dourados de sua mãe entre os corpos no chão com um desespero palpável tanto em suas vozes quanto no jeito de se moviam, desviando de corpos e parando uma vez ou outra para vomitar diante da cena terrível. Alguns corpos estavam mutilados – gargantas cortadas, barrigas abertas, múltiplos hematomas no corpo inteiro –, outros haviam sido despojados de vida com o que aparentavam ser golpes únicos. A única coisa que dava esperança às crianças era que nem todas as trabalhadoras do local jaziam no chão, o que para suas mentes aterrorizadas, significava que elas haviam saído de lá com vida. Sua mãe certamente estaria entre essas, não é?

Notando que nem ao menos havia um homem besta coelho entre os corpos, os gêmeos se puseram a ir em direção às escadas que levavam ao segundo andar– mas foram rapidamente parados quando trombaram com um homem bem-vestido que descia os degraus. Os gêmeos congelaram; o homem, apenas metade surpreso, parou também.

— Então são vocês fazendo toda gritaria? - ele parecia cansado, mas ao mesmo tempo perigoso– ainda mais com a arma robusta em sua cintura - Sabia que eram crianças, mas não pensei que fossem tão jovens

Sentindo o perigo que o homem representava, as duas crianças agiram em instinto e rosnaram, mostrando suas presas afiadas ao adulto–

O que acabou por ser o pior erro que cometeriam em suas vidas.

O homem arregalou os olhos,

— Presas? - antes de ter um momento de compreensão súbita tão evidente que era como ver uma lâmpada se acender acima de sua cabeça. Ele abriu um sorriso amarelo, - Híbridos. - e antes que Luka ou Veta pudessem perceber seu erro, estavam presos nas mãos do mais velho - Sabe, - ele começou - gente do seu tipo é extremamente valiosa~

Luka se debateu com todas as suas forças, usando dentes e unhas para atacar aquele que estava o segurando contra sua vontade; mas o humano parecia estranhamente acostumado e nada incomodado com aquilo. Com uma criança em cada mão, o homem subiu as escadas de onde tinha vindo e se direcionou a um quarto em específico; onde estavam, entre muita destruição, outros homens que – a julgar pelos seus trajes – pareciam estar com o captor dos híbridos. Mas não foi nisso que os gêmeos prestaram atenção; mas sim na a pilha de cabelos e orelhas douradas, sujas de sangue e jogadas sem jeito no canto no cômodo.

Para Luka, mesmo após terem visto tantos corpos em tantos estados de mutilação, nada se comparou com o olhar vazio e sem vida que pintava o rosto de sua mãe naquele momento– e suas memórias daquele dia desde estão foram sempre uma pilha nebulosa de momentos e emoções.

O que ele tem são memórias vividas mas desconectas de tentar lutar contra o punho em seu braço e mãos nojentas correndo por seu corpo. Palavras aqui, risadas alí, e a certeza que pesava em seu estômago: ele nunca mais veria a própria liberdade. Ele lembra do pavor no rosto de sua irmã, de sentir sua garganta arder pelo quanto gritou para que parassem, para deixarem pelo menos ela livre daquilo, e do quanto saber que não podia a ajudar doeu mais do que qualquer coisa que os homens fizeram com seu corpo.

Os próximos dias passaram em um piscar de olhos, mas mesmo tempo foram dolorosamente lentos; ele tinha sido encarcerado como um animal junto de sua irmã, e ao mesmo tempo que poder ficar junto de Veta durante aqueles tempos turbulentos foi a única coisa que o manteve são, todas as vezes que era posto junto da mesma na frente de um público repugnante como se fosse algum tipo de atração de circo escolhida para o deleite daqueles que o viam ele sentia a própria sanidade se esvaecer mais e mais rápido.

A rotina de comer porções insuficientes de comida e não ver qualquer tipo de luz – natural ou outrora – por dias a fio, sendo libertados apenas para serem mostrados como uma atração especial de um circo doentio cujos organizadores pareciam nunca se satisfazer com os preços que eram oferecidos por suas cabeças, continuou por em torno de dois meses– mas Luka sentiu como se estivesse preso em um pesadelo sem fim.

Um dia, no entanto, os captores do híbrido finalmente receberam uma oferta que os deixaram satisfeitos, e como se fossem uma mercadoria, Luka e sua irmã passaram de uma mão a outra. Das garras da gangue que cuidava da proteção de estabelecimentos na área onde nasceu – e estava bastante envolvida com tráfico humano também, pelo visto –, foram às garras de um homem besta que parecia ter dinheiro e classe de mais para estar comprando pessoas no mercado negro; Zakaria Reverie.

Inicialmente, os dois híbridos tentaram lutar contra seu novo carcereiro e fugir do complexo onde aparentemente passariam a viver, relutantes em aceitar seus destinos, mas Zakaria foi rápido em estabelecer que não queria o mal das crianças. Quando a primeira coisa que o homem fez foi ter certeza de preparar refeições completas para cuidar da desnutrição que os gêmeos sofriam, Luka percebeu que, de certa forma, ele realmente quis dizer aquilo– mas, so mesmo tempo, se o único objetivo daquele homem fosse somente o bem das crianças, ele não as impediria de deixar a casa onde estavam.

Alguns dias depois de terem chegado a sua nova "casa", quando já havia coragem de falar com o homem, Luka perguntou o motivo de estarem alí. Ele esperava receber como resposta que ele e sua irmã iriam trabalhar para ele, talvez até mesmo que seriam postos em algum tipo de circo, mas a resposta que recebeu foi que os dois seriam registrados como filhos biológicos dele e de sua esposa– que, por razões óbvias, foi inquietante para ambos os gêmeos. Luka não queria ser nem ao menos associado com alguém como aquele homem, muito menos ser dado como seu filho biológico. Indignado, o jovem demandou o porquê, e foi prometido uma resposta "em breve". Pouco tempo depois, os gêmeos foram apresentados a uma mulher chamada Semir – esposa de Zakaria e sua nova "mãe" – que tinha duas orelhas pontudas em sua cabeça e uma cauda peluda. Um homem (ou seria mulher?) besta.

Juntos, Zakaria e Semir explicaram que eram ambos homens besta – um coelho e um lobo, respectivamente, e Luka quase se deu um pé na bunda por nunca ter percebido as orelhas caídas entre a bagunça de cabelo preto do mais velho – e que tinham um impacto significantemente grande na economia do país devido a sua popularidade em comparação a outros do mesmo ofício. Os dois haviam se casado como um tiro no escuro; uma esperança de que vender uma história ao público sobre como o que os unia era o amor que tinham um pelo outro, visto que eram de espécies diferentes, fosse aumentar a popularidade de ambos. No início, havia funcionado excepcionalmente, mas anos dentro da mentira bem planejada a chama da atenção havia começado a se apagar, e por isso, eles decidiram tomar o próximo passo: tentar ter uma criança. Sendo de espécies tão diferentes, no entanto, aquilo era uma tarefa virtualmente impossível. Híbridos eram um nível completamente novo de raridade, ainda mais entre carnívoros e herbívoros, e Zakaria e Semir logo entenderam que o "modo tradicional" não era uma opção. Foi nesse período de tempo que o homem havia ouvido um de seus colegas comentar sobre como os gêmeos híbridos eram uma visão difícil de se acreditar estar realmente vendo; e Zakaria já sabia como resolver seus problemas.

Ele poderia criar um registro falso para Luka e Veta em um piscar de olhos, ainda mais quando as duas crianças não haviam um registro prévio, e seria fácil vender a história de que simplesmente não queriam admitir a existência dos filhos ao público até que fossem mais velhos pelo status de raridade de um híbrido. Eles apenas haviam de mover a data de nascimento para dois anos a frente, para que coincidisse com uma licença prolongada que Semir havia tido anos previamente, e qualquer furo na história era apagado. Era o plano perfeito, e tudo que os gêmeos precisavam fazer era manter as bocas fechadas e sorrir para o público. Em troca, Zakaria e Semir contratariam professores particulares para qualquer matéria que as crianças desejassem aprender, empregadas de alta classe para cuidar dos dois, comprariam qualquer coisa que Luka e Veta dissessem querer; os dariam uma vida luxuosa com que pessoas normais poderiam apenas sonhar.

Reise não sabe dizer se na época o maior choque havia sido o completo 180º que sua vida havia aparentemente tomado ou que os dois adultos tinham a coragem e audácia de usar ele e sua irmã como partes de um plano atrás de riqueza. Ainda muito novos, Luka e Veta aceitaram sem realmente terem uma chance de recusar, e Luka lembra vagamente de Veta usando a oportunidade de quando a fala foi passada a ela e perguntando aos adultos se sabiam por que o prostíbulo onde a mãe verdadeira dos híbridos trabalhava havia sido atacado daquele jeito.

⠀Ele se lembra, no entanto, da resposta;

⠀— Os donos haviam entrado em um acordo com a gangue local a procura de proteção, mas quando tentaram sair por não conseguirem mais pagar, as coisas acabaram ficando violentas. - Zakaria havia respondido, - Pelo menos foi o que ouvi daquele que estava os vendendo.

⠀As duas crianças haviam sido dispensadas então, novamente com uma promessa de uma vida "melhor do que qualquer uma que pudessem imaginar", e foram levadas por empregados a seus novos quartos. Relutantes em se separar, Luka e Veta insistiram por dormir no mesmo quarto, e passaram a noite conversando sobre seu novo predicamento.

— O que mais poderiamos fazer, se não só aceitar? Eles não se importam com a gente de verdade, mas também não é como se qualquer outra pessoa se importasse... - Veta havia dito, lágrimas em seus olhos, e mesmo hoje o coração de Reise ainda apertava dolorosamente ao lembrar da expressão de derrota no rosto da irmã.

⠀No dia seguinte, Zakaria havia anunciado as novas identidades dos gêmeos, agora Reise e Vivienne Reverie, e havia perguntado aos dois se desejavam estudar ou se desejavam alguma coisa. Vivienne havia pedido apenas para que ela e o irmão dividissem um quarto, dizendo que estudaria aquilo que Rei quisesse; o que acabou sendo aulas de história e artes– duas matérias escolhidas aleatoriamente. Com o tempo, por mais que Zakaria houvesse dito que as crianças estariam no controle daquilo que iriam aprender, o homem foi adicionando mais e mais coisas no cronograma dos gêmeos. Aulas ensinando instrumentos diversos, botânica, matemática, filosofia; qualquer coisa que o mais velho visse ser elogiado como um conhecimento onde poucos se sobressaíam.

⠀Viver naquele ambiente era tecnicamente fácil – eles eram bem alimentados e não eram negados comida extra, as aulas eram muitas e cansativas, mas era um preço baixo a se pagar quando ganhavam qualquer coisa que pediam – mas ao mesmo tempo era indescritivelmente difícil. Na sua primeira aparição pública, assim como nas muitas outras durante as seguintes semanas, ele havia se sentido horrível. Era como se sentisse culpado por enganar aquelas pessoas que nem ao menos conhecia, enquanto ao mesmo tempo fervia de raiva por estarem o tratando como algum tipo de joia especial. Rei não queria ser especial– ele queria uma vida simples onde podia se feliz com sua irmã. Os pesadelos de dias atrás de grades que vinham com a mesma certeza de que a lua subiria ao céu, entretanto, nunca o deixaram admitir sua frustração em voz alta. Rei aguentaria de cabeça erguida e boca calada se significasse que nunca teria que voltar àqueles dias.

⠀Em algum tempo, tanto ele quanto sua irmã cresceram e tomaram novas classes. Sentindo sua raiva reprimida começar a inchar seu peito como um balão oscilando na beira de explodir, o híbrido procurou por se envolver em alguma atividade física com algum grau de violência.

⠀No final, sua resposta acabou vindo na forma de uma humana de maneiras questionáveis. Suas roupas pareciam ser da boa qualidade que só montantes extremos de dinheiro poderiam comprar, mas seu sotaque pesado e sorriso aberto não o davam o ar de alguém que algum dia havia visto tanto dinheiro. Ela portava o nome de Therasia – embora insistisse que só "Thea" estava de bom tamanho – e uma espada em sua cintura que pretendia usar para ensinar Rei e Vivi aquilo que gostava de chamar de "arte".

Mesmo ao ensinar aos gêmeos como manusear uma arma mortífera, ela era amigável do jeito que ninguém até então fora com eles – pelo menos não genuinamente – e parecia nem ao menos computar o fato de que, tecnicamente, precisava tratar os pequenos híbridos como se fossem seus superiores. Reise nunca reclamou, no entanto, mas se viu perguntando como uma mulher daquelas havia se envolvido com gente como Zakaria e Semir.

⠀Quando perguntou, o jovem não estava esperando a resposta que obteve.

— Eu sou uma pirata. Nossa gente é tão temida quanto procurada por aqueles que tem dinheiro

E a piscadela que a pirata havia dado no final não havia ajudado a confusão na mente de Reise nem de Vivienne. Então, sem perceber que não deveriam estar fuçando tanto na vida de outra pessoa, continuaram a perguntar: "Por que está em terra firme, então?". E Thea continuou a responder, bem-humorada: "Dentre muitas coisas, é um probleminha entre eu e meus companheiros... Mas seus pais tão me pagando uma fortuna. Vou ficar aqui quanto tempo puder."

⠀Assim, sem realmente perceber, os três haviam caído em uma amizade estranha mas confortável, onde Thea reclamava sentir falta de voar e em torno os gêmeos reclamavam de seus pais. A pirata ensinava aos dois como empunhar suas lâminas, e eles reclamavam de como a mais velha era rigorosa apenas com aquilo. Rei e Vivi implementavam a dicas e repreensões que recebiam com uma meticulosidade astuta, e a mulher elogiava a habilidade nata que pareciam ter. Foi uma rotina que continuou durante muito tempo.

⠀— Sabe... - ela havia começado em uma tarde qualquer enquanto descansavam, e os gêmeos, de 15 anos e toneladas de raiva reprimida em seus peitos, reclamavam novamente sobre serem usados como bonecos por seu "pai".

Vivi, descansando distraidamente ao lado de Rei, murmurou em um sinal para que a pirata continuasse.

⠀— Se vocês o odeiam tanto, - Thea continuou, com um sorriso que até hoje permanecia na mente do híbrido - Por que não...?

Ela fez um gesto lento a frente do próprio pescoço, língua rolando para fora de seus lábios sorridentes– e nenhuma palavra a mais foi necessária. Vivi permaneceu imóvel ao seu lado, e Rei não repreendeu a mais velha por mais que sentisse que era o sensato a se fazer, ele apenas calou a própria boca. Aquilo havia provavelmente sido uma piada da parte de Thea – uma sem gosto, mas ainda assim uma piada –, mas na mente do jovem, parecia um raciocínio compreensível. Ele tentou não pensar no quão tentadora a ideia era.

⠀Nenhum dos três voltou a tocar no assunto depois daquele dia.

No aniversário de 16 dos gêmeos – o verdadeiro, não a data falsa arranjada por Semir e Zakaria que os deixavam dois anos mais novos – Therasia retirou três copos e três garrafas de dentro se casaco, insistindo em comemorar o dia. Ela brincou diante a própria garrafa que enquanto havia pego álcool para si, as outras duas garrafas continham suco "para os bebês"; e tomou um gole demorado direto do bico – vincadamente ignorando o copo que havia trazido para si mesma. Rei e Vivi aceitaram a oferta com um sorriso no rosto, gratos o suficiente com a amostra de amizade para fingirem ignorar o comentário da pirata.

⠀Aquela tarde após uma seção intensa de treinamento foi calma mas cheia de conversa, com ambos híbridos acumulando certa incerteza sobre deixar a mais velha ingerir alguma bebida alcoólica no futuro. Eles não haviam terminado nem metade de suas garrafas quando observaram Thea virar os últimos goles da sua, e Rei suspeitava que ela ainda estava se segurando.

⠀Quando o azul do céu começou a se estender em laranja, no entanto, contando aos três que a pirata havia permanecido sentada ao sol jogando conversa fora por mais tempo do que planejara, Zakaria os achou.

⠀Rosto impassível como sempre, o homem perguntou calmamente a Therasia o que ela estava fazendo. A resposta de "comemorando" não foi bem recebida pelo mais velho; ele franziu o cenho, olhando incisivamente para a pirata – mas especialmente para a garrafa aos seus pés–, e a chamou para seu escritório, onde poderiam ter "ter uma conversa". Uma vez a sós com sua irmã, Rei foi constantemente crescendo impaciente pelo óbvio tom de repreensão na voz de seu "pai adotivo", e, arrumando a espada em sua cintura mais para ter algo que fazer com suas mãos do que pela necessidade, se direcionou ao escritório do homem.

⠀Quando o garoto se colocou a frente da porta, ele hesitou um pouco antes de bater, mas quando o fez, foi Thea quem abriu a porta. O rosto da pirata estava puxado em uma expressão descontente–quase irritada, e Reise franziu o cenho levemente antes de levantar uma das sombrancelhas em uma pergunta silenciosa. A mulher expirou fundo, evitando esbarrar no menino ao sair da sala e apontando com o dedão para o cômodo às suas costas, como se respondesse "pergunte a ele". Sem precisar olhar para trás, o híbrido percebeu sua irmã entrando logo atrás de si– o que o deu mais confiança para confrontar o mais velho. Com uma expressão severa em seu rosto, ele se colocou ao lado da grande escrivaninha onde Zakaria estava sentado, vendo Vivi se posicionar ao lado oposto. O homem ignorou os jovens.

⠀— O que aconteceu? - Rei havia perguntado, usando da onda de coragem repentina que sentiu para firmar sua voz - Por que chamou ela aqui? Há algum problema em comemorarmos?

⠀Por alguns segundos, Zakaria não pareceu que iria responder, mas os dois híbridos também não pareciam que iam se mover tão facilmente– então o mais velho cedeu com um suspiro profundo.

  — Não acho que vocês tem direito algum de se meter naquilo que é entre mim e Therasia, mas se devem saber, eu a demiti.

⠀Os gêmeos congelaram, e Rei se viu quase cambaleando com o choque. Demitir Thea?! Por quê?!

⠀— Como assim você vai demitir ela?! - Vivi foi mais rápida em se recuperar, e bateu as mãos na mesa com força, fazendo os papéis nela quase caírem

⠀— Cuide esse seu tom de voz quando fala comigo. - a voz grave de Zakaria ressoou com repreensão no cômodo, sua face se contorcendo em irritação enquanto ele olhava para a garota - Como já disse, vocês não deveriam nem ao menos estar se metendo naquilo que não os inclui. Não os devo satisfação alguma.

⠀Rei teve que morder o lábio inferior para não rosnar, mas ainda tomou a iniciativa da irmã e derrubou os itens que estavam na mesa antes de bater seus próprios punhos contra a madeira lisa.

— O que quer dizer com "não nos inclui"?! Ela é nossa professora e nossa amiga! E não é como se só um gênio pudesse perceber que você tomou essa decisão nos últimos 5 minutos assim que nos viu comemorando!

⠀— Aquilo não é comemorar. - o homem franziu o rosto inteiro com desgosto - Eu nunca deveria ter contratado um pirata para começo de conversa. Não sei como me esqueci que são todos uns bêbados. - ele se levantou lentamente da cadeira, livrando as roupas de uma poeira inexistente - O mal se corta pela raiz. Eu não irei permitir que aquela mulher sem classe influencie vocês nessa direção imunda.

⠀Por um momento, Rei se sentiu fora de lugar com sua reação anterior. É compreensível, não...?

⠀— Mas, - ele começou, se sentindo amansado - Você sabe que não faríamos isso, não é?

⠀Vivi parecia traída pela mudança de atitude do irmão do outro lado da mesa, mas o jovem tentou não prestar atenção nisso. Se eles pudessem só resolver aquilo civilizadamente e fazer seu pai adotivo repensar aquilo...!

⠀— Eu não poderia ligar menos se vocês decidissem se enfiar em um coma alcoólico. - Zakaria bufou, como se aquilo fosse algo tão simples de se subentender que era cansativo de explicar diretamente - Mas o que vocês acham que o público pensaria de mim se a professora que eu contratei fosse aquela a influenciar vocês a fazerem uma coisa estúpida dessas? Inventar alguma história sobre amigos ruins seria mais fácil do que ter que admitir que falhei em alguma coisa.

⠀Rei congelou, sentindo o peso de suas esperanças afundarem em seu estômago, e conseguiu perceber com uma reflexão tardia que Vivi estava rosnando baixinho enquanto assistia o homem ir até uma estante do outro lado do cômodo. O híbrido cerrou seus dentes com força, sentindo a tensão em suas gengivas aumentar gradativamente. O bastardo ainda pensava apenas na própria imagem. Ele não ligava para Reise ou sua irmã. Nunca havia— e certamente não estava prestes a começar agora. Ele ligava somente para si mesmo.

⠀Como que o garoto havia esquecido disso?

⠀— Se era só isso que queriam me falar, podem se retirar. - Zakaria falou distraidamente - Vou arranjar um professor apropriado para preencher o lugar dela logo logo, então---

⠀— Você nunca ligou para nós - Rei começou, interrompendo o homem, - E ainda assim consegue agir como se fosse nosso dono. Até mesmo nos deixar escolher algumas das coisas que fazemos foi apenas para nos apaziguar.

— Porque eu sou seu dono. - O homem ainda não havia virado para encarar seus dois "filhos" quando respondeu, mas o jovem podia jurar que ele estava sorrindo - Fui eu quem os comprou, não foi? Você deveria agradecer a sua sorte ao invés de tentar me pintar como algum tipo de vilão.

⠀Rei sentiu algo dentro de si se romper e sua visão estreitar. Ele se lembra do borrão de movimentos, do som da queda de mobília ao seu redor – tão baixo sob o barulho de sangue correndo em seus ouvidos–, da leveza em seus pés. Há pressão em seu rosto –  um soco –, há uma camada grossa de adrenalina interferindo com a sua percepção de dor e todas as coisas físicas. Vivi está lá, mas nem mesmo ela se sobressai na convulsão de instintos que percorrem o corpo de Rei.

⠀Há algo firme em suas mãos. Algo que ele sabe manusear como se fosse parte do próprio corpo– e no momento em que faz a moção descendente, é como se realmente fosse.

⠀Há um barulho; doentio, nauseante e ao mesmo tempo simplesmente eletrizante de carne e osso quebrando em uma estranha sinfonia que louva a vida. Ela reverbera nos ouvidos de Rei e o deixa aberto e trêmulo, quase tonto com a torrente de um sentimento como fome saciada que inunda seu sistema. Ele se sente leve como nunca antes.

⠀Há sangue na sua lâmina. Ele pensa brevemente no fato de a lâmina não era cortante, mas descarta aquela linha de pensamento rapidamente. Afinal, qualquer coisa podia se tornar um instrumento naquela sinfonia; só era preciso o músico certo.

⠀Reise então nota outra coisa manchada de sangue: o rosto de sua irmã, ainda prendia os braços do cadaver em suas costas com um joelho forte. Ele a chama, e parece ganhar só metade da atenção da garota, que assistia a espada desaparecer na cabeça da vítima em um transe próprio. O jovem se agacha e leva uma mão ao rosto de Vivi, borrando e espalhando o sangue respingado em sua bochecha em uma tentativa de se livrar das gotas vermelhas. Ela olha em seus olhos, e Rei não sabe dizer exatamente que olhar é aquele– seu cérebro ainda está em desordem, e ele opta por não tentar descobrir. Ao invés disso, ele se dirige para fora do quarto, sem ter em mente um objetivo. Talvez eu vá buscar algo para limpar essa bagunça.

⠀(Ele percebe no canto de sua mente que seus sapatos grudam ao chão enquanto ele caminha, e tem quase certeza de que suas pegadas são vermelhas.)

⠀Passando a porta, Thea foi a primeira coisa que o cérebro de Rei registrou. Ela estava escorada na parede de maneira desleixada, um sorriso amarelo no rosto– e Rei sentiu como se aquela fosse a primeira vez que estivesse vendo a pirata. *Realmente* a vendo. Sua pele escura, seu cabelo partido em dois tons opostos, seus olhos finos de cores diferentes, os piercings decorando sua face. O quão perigoso aquele sorriso predatório parecia– o quão perigosa ela parecia.

⠀— Eu sou sua amiga, é? - ela riu, olhos brilhando com uma luz depravada.

— É. - o rapaz não fez a conexão imediata ao que havia falado mais cedo, sua cabeça ainda enevoada com adrenalina. Ele torceu a cabeça como um cachorro confuso, olhos redondos piscando lentamente - Não é?

⠀Thea simplesmente riu mais alto e afagou a cabeça do jovem e de sua irmã (desde quando ela havia saído também?), seu sorriso aumentando impossivelmente.

⠀— Acho que sou~ - ela disse, botando pra fora suas últimas gargalhadas antes de olhar mais calmamente para os gêmeos - Mas e agora, o que farão?

Reise e Vivienne não responderam. O sorriso no rosto da mais velha se acalmou, mas permaneceu.

— O que acham de virem comigo?

⠀Os gêmeos acenaram com a cabeça lentamente, confiantes em sua resposta mas de movimentos ainda lesados pelo esforço físico. Thea voltou a afagar o cabelo dos jovens.

⠀— Fiquem aqui, vocês dois estão sujos de sangue. Vou arranjar as malas de vocês.

⠀Durante a próxima hora, os dois híbridos permaneceram sentados a porta, esperando a pirata voltar. Vivi perguntou ao irmão se achava que alguém iria passar pelo corredor e os ver alí; Rei deu de ombros. Ela perguntou se eles se tornariam criminosos procurados; Rei deu de ombros. Após alguns minutos de silêncio, ela indagou se Thea realmente iria voltar para os buscar. Rei fez que sim com a cabeça, e ao seu lado, sua irmã sorriu, um murmúrio de "eu também acho" escapando seus lábios.

⠀Passada a hora, a pirata apareceu no fundo do corredor, duas mochilas nas costas e uma sacola na mão. Ela olhou para trás uma última vez antes de se aproximar mais das duas crianças e jogar a sacola em seus pés; de dentro, tombaram dois pares de sapatos limpos e um pano peludo. Thea pegou o pano e entrou na sala enquanto mandava os menores trocarem os sapatos, usando o pano para limpar as pegadas e a espada, após removê-la do cadáver.

⠀Quando chegou a hora de saírem do local de uma vez por todas, o garoto olhou para trás, encarando Zakaria como se seu cadáver fosse sair andando a qualquer segundo. Segundos passaram, o tique-taque dos ponteiros de um relógio. Zakaria não se moveu. O híbrido seguiu em frente, intento em nunca mais olhar para trás.

⠀Rei se lembra, distantemente das ruas percorridas naquele dia. Ele, sua irmã e Therasia praticamente se esgueiravam por entre fissuras entre casas e prédios que a mais velha chamava de "ruas estreitas", colados juntos apesar da impossibilidade física, e navegaram através do mar de corpos de ruas lotadas.

⠀Ele se lembra de um hotel quase que caindo aos pedaços, e de ver Thea conversar com o adulto por trás do balcão na recepção como se fossem velhos amigos; talvez realmente fosse esse o caso, pois apesar da cara ranzinza, ele havia os permitido uma semana completa no local, sem quaisquer custos (e por mais que ele houvesse salientado que os três deveriam dar seu próprio jeito de arranjar comida, ele ainda havia divido um prato quente de sopa com os gêmeos na sua terceira noite).

⠀(Memórias são uma coisa estranha, nem sempre dando prioridade a eventos importantes; mas ao menos, a memória de Rei era gentil, e anos mais tarde, eram momentos como esse que ele conseguia ver com clareza)

⠀Na manhã do segundo dia, Thea sumiu; nem mesmo o dono do estabelecimento havia visto a mulher sair pelas portas, e cogitou que ela houvesse fugido e deixado as duas crianças para trás. No meio da tarde, entretanto, ela havia voltado, e quando questionada sobre seu paradeiro respondeu apenas que estava "cortando os últimos dos laços que tinha com seu antigo empregador". Rei entendeu o quão suspeito seria o sumiço repentino da pirata, e optou por não questionar nada mais.

⠀Passada a semana, os gêmeos e Therasia haviam voltado as ruas. Com um conhecimento extraordinário dos subúrbios da cidadela, a mais velha os conseguiu trabalhos simples para ganhar dinheiro e pechinchou por locais onde pudessem dormir.

⠀— O que faremos agora? - já era de noite, e os três se preparavam para dormir em um quarto pequeno de duas camas ao fundo de um hotel barato. Rei se lembra que haviam pagado por aquele quarto e as cobertas extras nele com trabalho físico, ajudando os empregados do lugar a cuidarem dos quartos mais "luxuosos" (o mais "luxuoso" que um hotel de três andares com vista para chaminés de usinas conseguia ficar).

⠀Thea estava sentada em uma das camas, dividindo pedaços de um confeito doce com Vivi. Embora a jovem tivesse parado com a pergunta do irmão, a pirata continuou comendo a pedaços pequenos, sem nem ao menos levantar os olhos para Rei.

⠀— Agora... - ela começou, lambendo os lábios e se preparando para abocanhar mais da comida, - ...Nós damos um jeito de conseguir dinheiro para comprar um barco, e vamos até o Reino de Cameron. - ela levantou a cabeça do prato enquanto ainda mastigava, olhando com uma intensidade quieta para o calendário na parede - Lá, eu vou encontrar a minha tripulação. Logo será hora de vê-los novamente. Depois, vocês dois podem fazer o que quiserem.

O sorriso dela era enervante como sempre.

⠀(As vezes, Reise se perguntava se ela não era a besta entre os três. Como seria a tripulação de uma mulher assim?")

⠀— Por que não roubamos um barco? Não é mais fácil? - Vivi indagou ao lado da mais velha. Sua resposta imediata foi apenas um aceno de mão desta.

⠀— Roubar um barco colocaria a força aérea atrás de nós. Com apenas nós três, seria impossível se livrar daquelas baratas do governo.

⠀Assim, os três passaram cerca de cinco meses fazendo trabalhos avulsos através do reino de Eudrad; carregando cargas pesadas de até um navio ou outro, lavando pratos na cozinha de restaurantes duas estrelas, e até mesmo alguns dias como guardas para transações dificilmente aceitas pelas leis do reino. A remuneração que recebiam era extremamente pouca, apenas o suficiente para os comprar moradias e comida quente; mas, de semana em semana, Thea sumia ao raiar do sol e aparecia só horas mais tarde, quando o mesmo sol já havia se escondido, carregando sacos com montantes assustadores de dinheiro e um ar gélido. Rei quase chegou a perguntá-la de onde viera o dinheiro, uma vez, mas tinha mais bom senso que isso.

⠀A primeira coisa que fizeram ao conseguir a nova embarcação – Orgulho da Noite, Rei e Vivi haviam decidido batiza-la –, sob a demanda de Thea, foi comemorar. Ela havia quebrado uma garrafa de vinho caro –que Rei tinha quase absoluta certeza de ter visto a mulher roubar de uma loja– no casco do barco, levantado a âncora e enxotado Rei e Vivi para o convés inferior e dentro da cabine que se assemelhava a uma cozinha. A "festa" foi pequena e simples, sendo só garrafas de vinho sendo compartilhadas entre eles, mas muito apreciada.

⠀Em algum ponto da noite (ou, o que o relógio interno de Rei dizia ser a noite), Therasia puxou um mapa de Eudrad e os reinos vizinhos.

— Nós estamos aqui, ao norte do Reino de Eudrad... E queremos chegar aqui - ela arrastou o dedo através do papel, cortando cidades e pedaços de terra que Rei tinha uma vaga memória sobre, - no Reino de Cameron. Essa área é cheia de conflitos por território - Thea circulou com o mesmo indicador uma área ao sul, onde Eudrad dava lugar a Cameron - então talvez nos faça bem dar um desvio através de Kade. Se mantermos uma boa velocidade e não sermos interrompidos, devemos chegar lá em no máximo três semanas.

E com gritos exagerados de felicidade dos gêmeos, a noite continuou; Thea cantava em nostalgia sobre os dias e noites que havia passado em seu navio e os híbridos riam de suas excentricidades. Mais tarde, quando Rei conseguia sentir a ponta de seus dedos formigarem e a sua cabeça parecia mais leve, Thea sentou ao seu lado com um deselegante "thump". Vagamente, o híbrido notou que sua irmã havia adormecido em cima de uma cadeira, e estava quase escorregando ao chão.

⠀— Você é meio estranho, sabe? - ela riu, afagando o cabelo ruivo do híbrido. Rei piscou seus olhos redondos como uma coruja, sentindo o cheiro de álcool no hálito da mais velha.

⠀— Como assim? - indagou, ganhando uma nova onda das risadinhas contidas de Thea. Em seu cérebro de algodão, Rei podia a comparar com uma versão cômica de uma raposa; de uma inteligência perspicaz e aguçada, um sorriso afiado e com olhos estreitos que exalavam perigo e viam muito mais do que qualquer outro ser vivo.

⠀— Talvez não estranho, mas diferente. - ela continuou, murmurando um "não que haja muita diferença entre os dois" quase inaudivelmente. O líquido em sua garrafa dançava com a balanço gentil do barco, e ela grudou seus olhos no híbrido antes de continuar, procurando algo em seu olhar - Porque pessoas normais se perguntariam se matar alguém, até mesmo Zakaria, não as fariam tão ruins quanto aqueles que mataram sua mãe. - ela sorriu um sorriso cheio de dentes, - Mas você não parece preocupado com isso.

⠀O jovem parou para pensar por um segundo. É isso que fariam?

⠀— Realmente. Não estou preocupado.

⠀— E por que tanta confiança? Já aceitou seu lado perverso é? - ela gargalhou novamente, diversão brilhando em seus olhos finos. Reise apenas sacudiu a cabeça.

⠀— Não é isso. - disse, se sentindo estranhamente calmo e confiante com aquela conversa. Ele segurou contato visual com sua mentora e continuou: - Eu só sei que sou diferente daquele lixo.

⠀Thea levantou uma sombrancelha.

⠀— É? E por que, exatamente, você é diferente?

⠀Rei sorriu– pela primeira vez em muito tempo, de forma genuína. Pelo olhar suave que manteve no copo em suas mãos, parecia até mesmo que a memória que estava relembrando era uma feliz e preciosa para si.

(Talvez realmente fosse)

⠀— Porque o que eles fizeram foi errado. O que eu fiz foi certo.

⠀Thea pareceu satisfeita com a resposta que obteve, e satisfeita com sua bebida. Ela colocou o copo na mesa com um leve clink, insistindo que já era hora das "crianças" irem para cama.

⠀Os dias restantes passara normalmente, sem que o assunto voltasse a tona. Rei e Vivi acordavam com Thea virando suas redes e os fazendo dar de cara no piso de madeira do barco. A mais velha comandava os gêmeos através do deque, os fazendo levantar a âncora e dizendo como içar as velas do jeito correto (num barco grande como a Orgulho da Noite, três pessoas quase não eram suficientes para cuidar da embarcação inteira). Depois, ela os ensinava o que sabia sobre navegar; como lidar com possíveis perigos, como ler e navegar através de correntes de vento, como racionar alimentos para longas viagens, como cuidar de feridas e doenças comuns.

⠀(Reise se viu novamente questionando a si mesmo o tipo de tripulação a que uma pirata como ela fazia parte)

⠀Ao final das três semanas, os três haviam chegado a uma cidadela nos limites de Cameron sem maiores problemas. Rei imaginou que sua despedida seria uma cheia de lágrimas; mas foi estranhamente fácil se despedir da mulher. Ela havia cuidado deles até então-- agora era hora deles cuidarem de si mesmos.